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As escolas são os alunos

Guilherme foi um aluno cego que frequentava, desde cedo, o Instituto Benjamin Constant (IBC), escola para deficientes visuais no Rio de Janeiro, Brasil.

Ocho personas de pie escuchan a una de ellas hablar

Guilherme foi um aluno cego que frequentava, desde cedo, o Instituto Benjamin Constant (IBC), escola para deficientes visuais no Rio de Janeiro, Brasil. Utilizava do semi-internato o que possibilitou criar fortes laços com outros colegas, além de autonomia e senso de pertencimento à escola muito forte. Guilherme pertencia ao IBC e o IBC pertencia ao Guilherme. 

Sempre estava presente e participativo em todas as atividades da escola, frequentava as gincanas, os saraus, as festividades, os passeios, as palestras, as feiras escolares, as oficinas, os limites das salas de aulas não eram o bastante para ele. Apesar de não ter boas notas nas aulas de Língua Portuguesa, para ele a escrita em braille era um suplício, por conta do esforço de usar a reglete, para escrever ele sempre exigia a máquina Perkins (máquina de escrever em braille), por outro lado, Guilherme era um leitor voraz, era figurinha constante na biblioteca, recordo-me de quando, no final de uma de minhas aulas, ele me mostrou um livro em braille do Harry Potter e de que tive que reler para poder comentarmos sobre a história desse bruxo que vivia em uma escola mágica em outra dimensão. Adorava aulas de artes e de ouvir música, ouvia os hits de sua geração, todavia não era raro encontrá-lo ouvindo música clássica nos corredores do IBC.

Parte de sua forte personalidade tem origem em sua família, sua mãe era a referência e se fazia presente sempre que necessário, nas reuniões escolares, nos eventuais problemas disciplinares ou para acompanhar o rendimento acadêmico,  mas sempre dando oportunidade e espaço ao Guilherme de desenvolver autonomia e senso de responsabilidade dentro da escola. A afetividade não só com sua mãe, mas com sua família, tinha um carinho com seu sobrinho e outros familiares e esses laços serviram de modelo na sua relação com os colegas e funcionários da escola.

Em 2016, quando eu lecionava para as turmas de 5º do ensino fundamental, as disciplinas de História, Geografia e Ciências, os alunos com defasagem entre idade e série escolar, experienciei como professor uma grande lição.

Primeiro, aprendi que o baixo rendimento acadêmico esperado pela escola para promoção para as séries subsequentes não retratava o vasto conhecimento de mundo e capacidade de pensamento crítico que esses alunos apresentavam, o que me fez pensar em como a relação ensino-aprendizagem, a organização curricular e as formas de avaliação são ainda grandes obstáculos.

Em segundo, observei o quão potente é a capacidade dos alunos em modificar a realidade que os rodeiam, ou seja, entendi que a formação do aluno não se faz para a cidadania e sim na cidadania é que podemos nos tornar cidadãos. Dentre os alunos dos 5º anos que eu tive o privilégio de conhecer, posso ilustrar no Guilherme o papel dos alunos na construção de uma escola mais democrática.  

Guilherme
Guilherme

Ele não se contentava em apenas conhecer dos momentos históricos passados no Brasil, se inspirava nesses acontecimentos, queria fazer da história do Brasil a sua história, se indignava com os períodos de opressão e discriminacao social de nosso passado, ora queria ser rei para escrever a história a sua maneira ora queria ser um rebelde para protestar contra a censura durante o períodos da ditadura militar. Ele queria saber mais sobre democracia e questionava a organização política do IBC.

Não foi tarefa fácil ensinar essas turmas com a presença contagiante de Guilherme, as aulas planejadas vez ou outra acabavam em uma assembléia de estudantes, contudo valeu a pena trocar os exercícios e algumas leituras dos livros didáticos, para ver esses alunos se mobilizarem, aprenderem a mediar entre si os tempos de falas, a apresentar os tópicos de discussão, de ouvirem as diferentes ideias, amadurecerem no respeito entre si e na conscientização de se enxergarem como um coletivo.

Mas os limites das minhas aulas não eram o bastante para Guilherme. Ele não só contagiou seus colegas, mas também a mim e a outros professores e foi buscando ocupar os espaços que, então, começaram a surgir. Esses alunos resgataram o antigo estatuto do Grêmio Estudantil e o refizeram envolvendo grande parte dos demais alunos para iniciarem o processo eleitoral para a constituição do novo Grêmio. 

Em 2020, todo esse movimento começa a se tornar realidade. Desta vez, Guilherme não é mais meu aluno e eu estou ocupando um cargo na gestão da escola e é com muita satisfação acompanhar a evolução de um aluno ao se tornar, com o apoio de seus colegas, o representante discente, no mais alto espaço político do IBC, Guilherme é eleito representante dos alunos no Conselho Diretor do IBC com direito a voz e a voto. Fez da história do Brasil a sua história, assim como José Álvares de Azevedo (patrono da educação de cegos no Brasil) partiu cedo, mas nos deixou seu legado para a futura geração de alunos cegos do IBC.

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